A POESIA
Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.
Cientistas esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
Meu poema é puro, flor
Sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
É de papel.
Não é como a açucena
Que efêmera
Passa.
E não está sujeito a traça
Pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
O meu poema está infenso à vida.
Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo, insegura:
.........“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
.........o poeta Casimiro de Abreu.”
.........“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
.........sem emprego uma centena de operários.”
...... .. “A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
...... ...afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.’”
O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou
Era pouco? era muito?
........Era uma fome azul e navalha
........uma vertigem de cabelos dentes
........cheiros que traspassam o metal
........e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
........................................um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
.............................................................onde eu morria
Branca e verde
branca e verde
branca, branca, branca, branca,
......................................E agora
recostada no divã da sala
..........depois de tudo
..........a poesia ri de mim
Ih, é preciso arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
............................................O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?)
.............................................passa
A infância
passa
a ambulância
passa
..............Só não passa, Ingrácia,
..............A tua grácia!
E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.
...............E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
..............e dos perfumes
..............que dentro de mim gravitam
..............feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).
Poesia – deter a vida com palavras?
.............................Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
................................................esia – falar
................................................o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo
..............como bala em cada não
..............como arma em cada mão
...............E súbito da calçada sobe
...............e explode
...............junto ao meu rosto o pás-
...............saro? O pás
.............?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
............................................................Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
...........................súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
.....................................................e foge!
............como chamá-lo? Pombo? Não:
............poesia
............paixão
............revolução
Ferreira Gullar