Pesquisando sobre nossas ações enquanto artistas, educadores e escambistas encontramos a seguinte aula:
Por Ray Lima e Marcelo Olíímpio*
Poeta Ray Lima - Foto: www.cenopoesiadobrasil.blogspot.com.b |
De início, pensamos que a idéia de estabelecer um diálogo a
partir de perguntas e respostas poderia inibir ou travar o ritmo espontâneo da
troca, da reflexão crítica. Por esse motivo optamos pela conversa fluida, pela
escuta e pela escrita, nos proporcionando situações em que o pensamento flui a
partir das provocações e dos rebatimentos contínuos. Enfim, a idéia foi
transformar o ato de pensar em algo livre e prazeroso como um jogo de muitos
gols, mas sem caneladas, jogadas maldosas nem contusões, que gera prazer e a
alegria de quem está produzindo e compartilhando com os companheiros e a
torcida a um só tempo.
Outro aspecto motivador e desafiador foi também a possibilidade de construir um
texto coletivo (em dupla). Dessa forma, a conversa foi iniciada com a discussão
de que a arte e a cultura são elementos fundamentais no processo de
desenvolvimento da educação. Ou seja, a arte deve ser compreendida como algo
muito maior que um recurso didático ou pedagógico. Ela pode representar uma
visão de mundo, como pode ser o próprio modo orientador da pedagogia, neste
caso, “a educação da pedagogia.”
Apoiados em experiências concretas podemos dizer que a arte tem propiciado a
produção de saberes coletivos e individuais, de maneira crítica e criativa,
capazes de alterar não apenas as visões, mas também as práticas políticas e pedagógicas
no âmbito da comunidade escolar e fora dela, em seus entornos, a partir de
mudanças sentidas nas crianças, em educadores e até em algumas famílias.
As reflexões acima funcionam, de outra forma, como uma ótima provocação. E daí
o diálogo segue através da fala que explicita a importância da arte na formação
do indivíduo. Consideramos que não sendo artista, senão apreciador da arte, a
alfabetização artística pode servir como referência decisiva na construção e
reconstrução de processos de vida, levando-se em conta que o que parece um fim
não é mais que um novo começo. Portanto, a caminhada das curiosidades e
inquietações segue ainda mais estimulante. Como diz o poeta:
(1)
“ se tudo, como dizem,
já foi feito e dito,
o que nos resta,
senão ralar no infinito”.
Nesta direção, a arte é vista como indispensável para a formação do cidadão,
inclusive para as práticas sociais e para o trabalho. Entretanto, apesar do
anseio de pensadores, arte-educadores, educadores populares e sociais de
incorporar a arte de maneira mais sistemática no trabalho de formação para a
cidadania não existe a convicção e a firmeza de outros setores da sociedade, e
mesmo no meio educacional, de que esta seja o motor principal de um processo
educativo, embora seja aqui compreendida como imprescindível, tanto quanto
outros conhecimentos e recursos pedagógicos que contribuem para a formação
integral do indivíduo.
Por outro lado, despertam as contradições de nossa conversa quando percebemos
que a convicção a que nos referimos anteriormente é toda vivência, demais
advinda das práticas cotidianas de um viver artístico cotidiano e vivencial
inegável. E ela vai se construindo e assumindo um sentido estético, filosófico,
cultural e coletivo, não só da parte dos artistas, mas da parte dos educadores
praticantes, sejam eles formais ou informais.
Para que haja aprendizagens com prazer e alegria cabe ao artista transformar-se
e/ou reconhecer-se como educador, e o educador transformar-se e/ou
reconhecer-se como artista. E isto, de algum modo, tem mexido com a educação em
alguns municípios ao longo do tempo como Janduís-RN, Icapuí-CE, Aracati-CE e
mais recentemente Maracanaú-CE, para darmos exemplos concretos. Constatam-se na
experiência educacional desses municípios transformações no comportamento de
muitos educadores, gestores e estudantes impulsionados por ações estratégicas
como: Recriança, Escambo Teatral de Rua e Caminho do Mato; Escola de Arte e
Esporte e Showniões; Programa Zumbi de Desenvolvimento das Aprendizagens; e
Escola Zumbi, respectivamente. Todas essas estratégias quando vinculadas às
Políticas Públicas Locais, principalmente às de Educação e Cultura, abriram
muitos canais de participação e empoderamento da população.
Diante disso, vêm à tona reflexões ou indagações tais como: o público que não
consegue ser público é porque tem os seus senhores? Está feudalizado? Se educar
é uma arte, a arte de educar é a arte dos vínculos, ao dispor de elementos de
distanciamento e de integração capazes de unir e fazer as pessoas pensarem juntas.
Nada mais dramático, teatral do que o ato de educar. Se é assim, por que na
maioria das vezes isto não acontece no mundo dasinstituições públicas,
principalmente no interior das escolas? O que a arte vinculada à educação tem a
ver com políticas ou metodologias de trabalhos centrados na adolescência e na
juventude? Em que medida as linguagens artísticas podem contribuir na efetiva
qualificação das aprendizagens e na melhoria da qualidade das relações humanas
no território da educação formal? Que papel tem exercido e ainda pode exercer a
arte na definição e no comportamento das sociedades, bem como na evolução das
civilizações?
Bem, não chegamos a nenhuma conclusão, mas sentimos que estas questões, esses
temas estão impregnados de cotidianidade, carecendo de um maior aprofundamento.
(2)
“Pois é. O cotidiano. O danado do cotidiano nasce e morre, fixa e remove. O
cotidiano pai e padrasto. O que nos faz rei do enredo e súdito da história. O
que torna viva a lembrança do momento vivido e refém da memória adormecida do
esquecimento. No cotidiano somos e não somos sujeitos da história; inventamos e
somos reinventados; somos dele sujeito e objeto.Nele se instalam a vida e a
morte; a ditadura e a democracia; o retrocesso e a revolução. Nele o tempo
dispara em ritmo veloz e também repousa. Não temos tempo. O marco é zero. A
vida estica e diminui. A vida é de todos e de ninguém. No cotidiano perdemo-nos
de nós e, ao mesmo tempo podemos encontrar ou reconstruir nossa identidade.
Consumimos e somos consumidos pelo tempo-espaço da cotidianidade...”
Neste momento, o diálogo muda de rumo e corta a fala do poeta o tema da
educação focada no trabalho. O fato é que as mudanças tecnológicas, em
particular a reestruturação produtiva ou a desestruturação do trabalho no mundo
atual, obrigam-nos a fazer uma pergunta: que formação podemos propor ou
direcionar para a juventude, partindo dos processos educativos estabelecidos?
Sabemos que a cada dia há uma redução da oferta de postos de trabalhos. O
mercado torna-se cada dia mais seletivo e incorpora requisitos para o
trabalhador, como por exemplo, saber trabalhar em grupo, inteligência emocional
entre outros aspectos não reconhecidos em concepções que antes orientavam os
modelos taylorista, fordista, tonando-se infinitamente mais excludente. Em
outras palavras:
(3)
- morreu fulano de tal!
morreu fulano de tal nas portas
da multinacional
onde o letreiro dizia:
“ não há vagas” “não insista”
“não perturbe” não persista”
................................................
é ovo frito é britadeira
É feijão é carrapeta
É rapadura é estilheira
é carne dura é cantoneira
é o ditador é a trincheira
A desestruturação do trabalho joga uma grande parcela de trabalhadores para a
informalidade, esta cada dia mais crescente, porém muito marginal, o que nos
leva a experimentar novas formas de organização do trabalho e apresentar-se
como alternativa ao capitalismo quando assume um caráter de economia solidária.
O mercado formal a partir do estabelecimento de novas exigências e o informal
com a abertura de novas possibilidades, tem proporcionado uma certa diminuição
do preconceito de reconhecer a arte como um fator importante para o
desenvolvimento humano, embora de forma insuficiente e incipiente.
A pergunta então se repete. Que formação para a adolescência e a juventude cabe
na contemporaneidade? O que aprender para viver, escapando dos possíveis golpes
calculados e sair intacto, dignamente? Que tipo e montante de conhecimentos
estratégicos e habilidades tão incipientes cidadãos precisariam para construir
suas autonomias individuais e deixar a condição de escravos das determinações
mercadológicas e do consumo que nos fazem carrascos de nós mesmos? Aí está o
desafio, o jogo dramático dos nossos tempos que nos pode levar ao maravilhoso
espetáculo da vida ou ao fúnebre e triste ritual da morte e da violência:
(4)
quero ver malandro
sem maromba marombar
no arame do circo
farpado
capoeira atento
escapar intento
do possível golpe
calculado
olho a olho
face a face
mano a mano
tete a tete”...
E daí, então, saltar fora dessa verdade cruel na esperança de poder cair dentro
de uma outra realidade mais segura e aceitável logo em seguida ou, talvez, se
perder para sempre na lixeira da competitividade “deletane” e excluidora do
neocapitalismo.
Embora partamos do princípio de que a formação tem que ser a mais ampla e
precisa possível, não podemos esquecer que uma das coisas que as pessoas querem
e precisam é de ter um trabalho, uma ocupação de sustento da vida. Isto nos
coloca diante de situações contraditórias sempre que adotamos o discurso das
competências como alternativa de inserção, das pessoas tornarem-se sujeitos de
seus próprios destinos.
Considerando o exposto acima resta-nos o desafio de relacionar a construção do
conhecimento e da autonomia com a perspectiva de liberdade e tolerância. Então
como conjugar cultura no plural? Como produzir e imprimir olhares diferentes
para compreender este complexo sistema de relações individuais e coletivas, de
subjetividades e materialidade, de desejos e necessidades diversas? O poeta não
responde, mas dilata a pergunta numa gama de reflexões:
(5)
“É imprescindível e inevitável que sejamos filósofos.
É preciso aprender a semear com a máquina do tempo.
É vital, mais que vital, inventar.
Vida e verdade. Sonhos e realidade.
Razão com alegria bailando
sobre o espelho das águas perenes.
Ainda esperamos, coitados, as chuvas do céu,
quando deveríamos fazer chover no chão de caos e ilusão;
umedecer as pedras, fazendo-as verter poesia;
transformar em vida a energia do sol em desperdício
que hoje nos flagela e definha.
A fome, indústria cega e daninha, há de ser
o instrumento maior de transformação, tinta e pincel,
a reflexão, o painel sobre a eterna falta.
Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda.
A inteligência carcomida pela força da moeda
será o túmulo dos canibais de consciência.
É imprescindível e inevitável que sejamos filósofos.
Filósofos de nós mesmos.
Criadores e semeadores da nossa própria filosofia.
Recriadores confessos do nosso rosto.
Decoradores do espaço reservado à nossa causa.
Defensores incessantes do grito de liberdade,
do motivo do nosso choro, da grife do nosso riso.
Precisamos estar sempre dispostos a corrigir nossos costumes;
a mergulhar no abissal dos nossos valores culturais
para que venhamos festejar nossa vanguarda.”
Retomando a questão da arte e da educação, quando falamos de arte deve - mos
ter uma concepção. A arte, ela pode emancipar ou limitar. Então como viver
experiências de negociação cultural que tenham como pressuposto uma cultura da
tolerância, negociando valores e visões de mundo?
Estas questões também nos permitem fazer uma nova e ao mesmo tempo tão velha
pergunta: de que maneira a humanidade tem construído seus caminhos para a
emancipação? Até que ponto estamos contribuindo para que as pessoas, em
particular os jovens, as crianças, os adolescentes enfrentam os desafios do seu
tempo e dos tempos futuros? E de que modo lhes estamos orientando do ponto de
vista da educação, formal ou informal? De igual forma como as políticas
públicas estão reafirmando-se como espaços de cidadania e gerando oportunidades
para que as pessoas, em particular os jovens e adolescentes, enfrentem os
desafios do seu tempo e do devir?
Portanto, é mais do que necessário que na definição de políticas públicas
estejamos permanentemente reafirmando o compromisso de abrir os espaços formais
de educação para a riqueza de possibilidades suscitadas pela arte e pela
cultura. Os espaços educativos não devem se limitar apenas ao convencionalmente
definidos pelas necessidades e ambições do mercado, mas devem aspirar ao sonho
de humanização do mundo e
(6)
“Por isso ir
além
das margens
da imaginação”
É importante também que as instituições e a sociedade civil, tais como ONGs,
cooperativas, sistemas educativos, empresas, etc. saiam do conservadorismo e do
formalismo, incluindo novos procedimentos, apontem para novas perspectivas que
contribuam de maneira efetiva com o rompimento dos preconceitos, incorporando a
arte nas suas ações e influenciando as políticas públicas.
Podemos conjeturar, ainda, que não basta preparar para o trabalho, como se
prega por aí nos meios educacionais com tom de revolução. O problema está em
como o que estamos propondo e fazendo favorece decisivamente que os jovens
possam estar suficientemente instrumentalizados, preparados para enfrentar os
desafios, as situações limites da vida em sociedade. Se o que está sendo
ensinado e aprendido, muito menos do que facilitado e apreendido, está servindo
para a vida dentro e fora dos centros de formação -, está desenvolvendo a
pessoa como cidadão, fazendo a ligação com a contemporaneidade e a conexão do
que se aprende com o que e onde se vive.
Recife, 03 de julho de 2003.
Maranguape, janeiro de 2007..
*Ray Lima Ator, poeta e educador do Grupo Pintou Melodia Na Poesia – CE e do Movimento Escambo Popular Livre de Rua.
Mais no endereço: http://pt.netlog.com/rlima451/blog
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