Imagem meramente ilustrativa - retirada da internet |
Se você é uma pessoa comum que pega ônibus diariamente para
ir ao trabalho ou aos estudos, com certeza naquele horário de pico já se viu na
desconfortável situação de estar ao lado de alguém com um odor característico
forte na região das axilas. Vulgo sovaqueira. Começo de noite, quinta-feira,
lotação básica. De repente você nota que tem algo errado no ar. Morrendo de
medo de ser em ti mesmo, dá uma fungada discreta no canto do braço. Não é. É no
cara ao lado, que está como você, em pé, se apoiando nos bancos. Ao menos isso,
pois até aí os braços dele não estão muito abertos. Mas aí ele inventa de
erguer as mãos e se segurar naquele corrimão na parte de cima do coletivo, para
o desespero alheio. Você pensa em avisá-lo, xingá-lo, atirar-lhe desinfetante.
Porém tudo isso pareceria mais escroto ou constrangedor que a própria realidade
daquela atmosfera, então sua única ação é a de se proteger, tentar não encostar
nele e seguir a viagem.
Ufa! Finalmente você desce do ônibus, volta a respirar o ar
fresco ainda não muito agradável da cidade e se indaga porque uma pessoa dessas
não se lava, usa desodorante. É a pergunta mais óbvia que nos vem à mente.
Particularmente, também penso nesta: E quando não existiam desodorantes ou
perfumes?
Imagina os nossos ancestrais, quando o ser humano era apenas
sapiens ou nem isso. O quão mais forte era a nossa nhaca? Talvez o cheiro fosse
usado como forma de seleção natural. Somente os indivíduos que não sufocassem o
parceiro conseguiriam acasalar e procriar saudavelmente.
Brincadeira. Na verdade, acho que alguns dos odores do nosso
corpo hoje são bem piores que no passado, tanto por uma questão ecológica — já
que cada vez mais somos atacados pelos hormônios e produtos químicos na nossa
comida ou produtos de higiene, pela poluição e pelo estresse da vida moderna —
quanto por uma questão de costume.
Diferentemente dos antepassados selvagens, que provavelmente
utilizavam mais esclarecidamente o olfato para a identificação territorial,
sexual, etc, nós hoje negamos quase completamente o nosso cheiro. Desde que
nascemos, passamos pelo processo de acobertamento das nossas essências naturais
através do sabonete, do shampoo, do condicionador, dos cremes para pentear,
pastas de dente, talcos, dos perfumes e colônias.
Mas as coisas no universo funcionam de forma compensatória.
Ou seja, no que essa nossa artificialidade nega, também afirma muita coisa. Por
exemplo, você se lembra quando o cheiro do seu corpo começou a ficar mais
forte, lá pelos onze anos, já perto da puberdade e você foi coagido a usar
desodorante? Suas axilas, assim como a de seus colegas tinham, um aroma meio
enjoento, mas não era tão desagradável, certo? Convenhamos, era até um
cheirinho bom, principalmente o dos ou das colegas do sexo oposto (exceto o do
Amoeba, que era como a galera da minha sala no Fundamental chamava um menino
que tinha manchas esverdeadas abaixo do braço, na farda). Pois é, não negamos
de todo. Ou você também não já cheirou aquela cerinha do ouvido? Ou não já
levou o dedo às narinas após a coçadinha no rego? E ninguém se intoxica ou
vomita depois disso. Aliás... Nós gostamos!
Não negamos de todo pois nossos cheiros são o que guardamos
talvez de mais instintivo. Sim, o olfato é o nosso sentido mais profundo. É
através dele que acessamos as memórias mais abstratas e incompreensíveis. Você
guarda lembranças de aromas que sentiu de determinadas pessoas, comidas ou
objetos em épocas específicas da infância. Quando você detecta algo parecido,
isso imediatamente te remete àquela memória, mas você nunca lembra exatamente
como era. Porque não é imagético, não é claro ou racional.
Você está caminhando na rua e não nota estar com fome até
sentir o cheiro de almoço de alguma casa ou restaurante. Não surte o mesmo
efeito se você apenas olhar o prato de alguém.
Jadiel Lima - Cenopoeta do Movimento Escambo |
O cheiro também nos segrega socialmente. Os perfumes mais
intensos e de melhor qualidade são mais caros. Pode parece só um detalhe, mas
inconscientemente ou não as pessoas recebem melhor quem se veste em um aroma
agradável e autêntico. Talvez isso um perfume francês conte mais que uma roupa
de grife. Locura, né? O mercado sabe e age dentro disso.
Os odores diferenciam também situações sociais. Para sair à
noite é necessário ir “para casa tirar o cheiro de sol”, como dizia minha mãe,
e se perfumar todo. Há quem saiba jogar com isso e discernir perfumes para
diferentes ocasiões. Ou quem também saiba que cada perfume toca o nariz de
alguém diferente e se pinte de gostos específicos.
E há cheiros que te tocam, querendo ou não, e com os quais
você vai se harmonizando ao longo da vida. Reconheces aquele macio, de horta,
de areia fofa úmida, que é o da sua da mãe; também aquele leve, casquento e
antigo de livros, que é o do seu pai; aquele outro, perturbador, de toalha
molhada dentro de casa depois da chuva, característico do amado ou da amada.
Aromas que você coleta na convicência através de um belíssimo gesto: o cheiro!
Fui criado num contexto onde o ato de cheirar é cumprimento, demonstração de
carinho. É como se o gesto comunicasse um “sentir o seu cheiro me faz bem” ou
no mínimo um “eu não me importo”. Este último é ainda mais maravilhoso.
_Não, o meu cabelo está fedendo, eu passei o dia correndo no
meio do mundo... — a pessoa reclama e você a cheira mesmo assim, porque
realmente não se importa e isso não anula a outra sentença de que sentir o
outro lhe faz bem.
Mais que tipificar estéticas, o olfato é uma linguagem que
nos permite compartilhar afetos e de uma maneira muito profunda. Às vezes é
importante saber se comunicar melhor através dele. O que custa agradar de vez
em quando? No entanto, nada mais gratificante que reconhecer e aceitar os
nossos aromas naturais, nossas identidades, a bagagem subjetiva que carregamos
através deles. Abdicar das superficialidades artificiais olfativas do mundo
contemporâneo e nos perfumar com a nossa naturalidade, nossa ancestralidade.
Boa sorte, cara do ônibus.
Via: http://jadielblogdele.blogspot.com.br
0 comentários: