Pedagogia do alagamento

"Transformação do cotidiano em obras de arte... Aula show!"
Comentário da aluna Raissa Dantas - E.E. Santos Dumont Parnamirim/RN sobre aula de Emanuel Coringa debaixo de chuva.


Barquinhos feitos de papel na aula de Artes do Professor Emanuel Coringa durante temporal em Parnamirim/RN que acabou modificando o ambiente de sala de aula para uma outra coisa chamada Transformação do Cotidiano. 
Por Emanuel Coringa

Hoje dia 06/03/2015 pela manhã sai para mais um dia de trabalho na E.E. Santos Dumont onde leciono Artes desde 2014. Ao chegar na escola a chuva já caia forte, me encaminhei para as turmas de sétimos anos onde daria aula. No início da primeira aula o barulho da chuva já atrapalhava a comunicação, os meninos se agitavam por conta dos trovões e seus estouros e os clarões cortando o céu, até ai tudo bem! Era a natureza trabalhando e minhas dificuldades pelos barulhos eram contornadas com prazer. Contornar dificuldades em nossa profissão é bem natural, porém 20 min depois a sala era invadida pela água que entrava pela porta, ai fica impossível acalmar 45 crianças incomodadas com o fato, era a junção do incomodo deles com o meu de observar que aquele fato se repetia na escola, fruto de um trabalho de engenharia mal desenvolvido, que ano passado foi prometido solucionar, as salas foram construídas em uma baixa e para alagar não precisa de muita chuva. Por um momento me vi sem saber o que fazer, até que a Arte me mostrou o caminho, com a ajuda de uma frase de um aluno que gritava “traga um barco que quero ir ao banheiro”. Mudança de planos! Chamei a atenção da turma e perguntei: Quem está incomodado por ter aula com a sala alagada? Gritos e reclamações ecoaram dos quatro cantos em meio a “Bagunça” instaurada, comecei a explicar para eles que existia uma forma de se produzir arte baseada na intervenção de um artista em espaços cotidianos. Na primeira aula que tinha tido com a turma discutimos um pouco sobre o papel da arte, e para que estudar arte? Onde eu/professor apresentava um objeto artístico que tinha a função de discutir problemas reais de uma comunidade, de um povo, e dessa forma intervir de forma direta na sociedade, uma arte construída a partir da problematização do cotidiano. Depois de uma breve explicação sobre intervenção artística, para que a ação que eu tinha idealizado e iria construir com eles posteriormente tivesse realmente sentido pedagógico para a compreensão de arte e da importância do artista como produtor de arte. Ao fim da rápida explicação perguntei a turma, quem sabe fazer barco de papel? Um aluno logo disse que sabia e eu avisei a turma que mudaríamos de professor, um segredo, eu não sabia fazer! Mas a partir de agora todos destacariam uma folha de papel e acompanharíamos o colega que ensinaria todos a fazer, inclusive a mim/professor. Após encher uma mesa com cerca de 45 barcos de papel, anunciei a turma que iriamos com aqueles barcos intervir em um espaço cotidiano, nossa sala de aula! Em meio a risos e caras de sustos provocadas pelo estranhamento da proposta, convidei os alunos para soltarmos os barcos de papel para navegar entre nossas cadeiras e pés de nossas crianças dentro da sala de aula, naquele momento alagadas. Aquele era nosso espaço cotidiano, como um problema real causado por descaso em mais uma construção publica em uma das maiores escolas que temos no estado chegando perto de 2000 alunos, de índices elevados nas provas de comprovação de qualidade do ensino, mas cheio de problemas estruturais etc. Convidei os alunos a atentarem para as reações das pessoas que viriam aquela intervenção, a força do vento que circulava empurrava os barcos para o corredor alagado, ao chegar do lado de fora o estranhamento dos alunos que estavam nos corredores se repetiu, e as interrogações nasciam na velocidade da chuva que caia forte, entre as formas de se interrogar, o riso aparecia seguido de curiosidades que brotavam da simples intervenção de barcos boiando no espaço onde deveria haver aula. Fotos e filmagens se multiplicavam, aos poucos os próprios meninos passavam a tentar justificar cada um à sua forma a instalação construída. Estranhamento, incômodo, intervir no cotidiano, a arte não é apenas bela, ela incomoda e esse incomodo é questionador por natureza. O estranho, o engraçado, o feio são elementos de grande potência artístico e pedagógico, por isso estranhem! Achem feio! Loucura! Exibicionismo! Em alguns momentos sentimos até certo desdenho, mas para desdenhar é necessário se interrogar, ai a mim, a obra de arte e os alunos protagonistas da ação cumprimos nossa função artística, gerar reflexão, e você que torce o nariz obrigado por abrilhantar nosso trabalho com seus questionamentos internos, e suas caras e bocas que me dão a certeza, estou no caminho certo. No intervalo já me sentia feliz pelos questionamentos gerados em um grande número de alunos a partir da intervenção, mas para ampliar a surpresa e comprovar a força que uma ação artística protagonizada a partir de uma ressignificação do espaço (transformação do espaço) pode ter, um de nossos alunos instigado pelas discussões protagonizadas pela intervenção feita em aula resolve posta na internet imagens do alagamento e do trabalho desenvolvida, daí a produção de um dos canais de TV do estado chega até a escola para fazer uma matéria sobre a situação. Nosso jovem aluno através da tecnologia atrelada a rede de internet, ampliou a força da ação ao ponto de tornar o problema de seu cotidiano assunto a ser solucionado por uma batalha travada também por nossos pequenos alunos/artistas, que entendem aos poucos a força que uma obra de arte pode tomar, e principalmente compreender que criança/adolescente tem voz, tem força e sabe discutir qualquer assunto, desde que seja dado a eles o devida espaço, vez, voz e valor! Obrigado a todos os alunos pelo conhecimento construído hoje em sala de aula e termino citando Chico Science acreditando que “Eu desorganizando posso me organizar”.

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